O realismo e a influência do tempo na “Trilogia do Antes”
- Câmara Escura
- 12 de abr. de 2024
- 10 min de leitura
Atualizado: 6 de mai. de 2024
A representação do real norteia a visão artística do cineasta segundo crítico da sétima arte
Por João Pedro Peron

O diretor e roteirista Richard Linklater lançou Antes do Amanhecer em 1995, baseando-se em uma experiência que teve viajando pela Europa. A trama consiste no jovem estadunidense Jesse (Ethan Hawke) encontrando a francesa Céline (Julie Delpy) em um trem que chega a Viena. Como o rapaz pegaria um voo de volta para os Estados Unidos pela manhã, convence-a a passar o tempo que resta andando pela cidade com ele. A história os protagonistas caminhando e descobrindo a cidade enquanto se conhecem e conversam sobre diversas questões da vida.
Após o primeiro filme, nem atores nem diretor pensaram na possibilidade de uma sequência, entretanto, nove anos após o lançamento de Antes do Amanhecer, os três se reencontraram para escreverem uma sequência, Antes do Pôr do Sol, na qual os dois personagens também se reencontram após nove anos, dessa vez, em Paris, com Jesse lançando um livro que escreveu com base na noite em que passou com Céline. O escritor tem pouco mais de uma hora antes de pegar o avião de volta para os Estados Unidos, tempo que passa conversando com Céline enquanto caminha pela capital da França.
Um terceiro filme não era confirmado, entretanto, os artistas sentiram a necessidade de completar a trilogia nove anos após o segundo, realizando o desfecho Antes da Meia-Noite. Situado na Grécia, o longa aborda uma crise conjugal do casal, que permaneceu junto agora durante nove anos e possui duas filhas, sendo que este também se passa em menos de 24 horas.
Abordagem realista
Esses filmes parecem espontâneos, de forma que apenas se ligou a câmera e os atores começaram a improvisar, tanto que parte do público acredita que houve muito improviso durante as filmagens. Entretanto, os atores e o diretor já afirmaram diversas vezes em entrevistas que tudo foi extremamente ensaiado e marcado, embora haja alguns pequenos momentos de improviso, como em muitos filmes. Houve um trabalho árduo de ensaio para que os atores tivessem decorado perfeitamente suas longas falas e os locais que devessem se posicionar. Em uma entrevista concedida à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em 2013, Delpy afirmou que, "para realizar esse tipo de abordagem, ela teve que atuar como se 'não estivesse atuando', de forma que tudo soasse perfeitamente natural e espontâneo", o que foi possível devido à abordagem realista de Linklater.

Para realizar o primeiro filme, o cineasta quis aproximar a ficção ao real, tanto na abordagem da direção, quanto no roteiro, algo que pode ser comparado com a visão que o teórico e crítico de cinema André Bazin tinha de cinema. Segundo a crítica de cinema Fabiana Lima, filiada a Critics Choice Association, para Bazin, é natural a tentativa do cinema de aproximar-se do real e as evoluções das técnicas cinematográficas, para o teórico, provam essa ideia, como a presença de som, cores, e até mesmo os efeitos especiais. Desse modo, Lima aponta que ele defendia o uso de planos-sequência (ou seja, sequências em que não há cortes) para causar essa aproximação do real, até numa valorização dessa técnica em detrimento da montagem, que, segundo o teórico, impossibilita a visão completa de uma cena de forma realista, sugerindo ideias ao espectador. Bazin não era contrário à montagem como um todo, sendo bem-vinda pontualmente, dentro de limites que não atendem contra essa abordagem cinematográfica pautada na representação do real.

O professor e crítico de cinema Marcio Sallem, filiado a Critics Choice Association e à Associação Brasileira de Críticos, esclarece a diferença entre o modo de representação realista e o compromisso com o real. Segundo ele, o filme Cloverfield (2008), por exemplo, utiliza um modo de representação que seria hiper-realista, o “found footage” – subgênero muito comum no horror, que consiste em um falso documentário, geralmente filmado com uma câmera simples – entretanto, não possui um compromisso com o real, visto que monstros gigantes não existem.
Sallem enxerga essa ideia de representação dentro do cinema de Linklater como norteadora de todo seu cinema e sua autoralidade. "Até mesmo em outros trabalhos do diretor, como a animação O Homem Duplo (2006), é utilizado esse modo de representação, nesse caso foi utilizada uma técnica semelhante à rotoscopia, para deixar os personagens esteticamente muito próximos do real" revela o crítico. Para Sallem, o realismo do Linklater é um estilo próprio, ou seja, um elemento componente de como ele enxerga o cinema, utilizando a câmera perto dos atores, acompanhando-os caminhando por cenários reais e não em estúdio, interagindo com o espaço ao redor deles e deixando que construam a cena, de modo que há poucos momentos de intervenção, o que pode ser percebido com os poucos movimentos de câmera, por exemplo.
Esse modo de representação também pode ser observado, segundo Lima, na fotografia dos três filmes, em especial do primeiro e do segundo, que utilizam poucos filtros, além de serem filmados principalmente com a utilização de luz natural. Ademais, a crítica ainda destaca outro fator que contribui para essa abordagem: a ausência de trilha sonora nos dois primeiros longas, visto que são utilizadas somente músicas diegéticas, ou seja, que os personagens também estão escutando (a não ser pelos primeiros e últimos minutos dos longas, que, de fato, utilizam músicas extra-diegéticas). Além de isso contribuir para a focalização nos diálogos, parte fundamental dessa trilogia, torna possível à audiência ouvir as cidades e vê-las como personagens da história. Diferente de Antes da Meia-Noite, que é possível ouvir a música tema composta para a obra que se repete ao longo da trama.

Quanto às três regiões europeias nas quais os filmes se passam, Lima sugere que a escolha de Viena foi devido ao baixo orçamento, e não é possível apontar de forma objetiva o motivo, mas acredita que, por se tratar de uma cidade muito antiga, torna a passagem dos personagens por ela ainda mais especial. Já Paris, segundo a crítica, é muito mais romântica, propícia ao reencontro de pessoas na ideia de amor, fator exemplificado em uma cena em que os personagens entram em certo conflito dentro de um barco, que passa por trechos históricos da cidade, de modo que evidencia que os personagens são obrigados a ficar naquele cenário e conversar. Para o terceiro longa, escolheu-se especificamente a Grécia, em especial a região do Peloponeso, em que ocorreu a famosa guerra, motivada pela rivalidade entre Atenas e Esparta. Para Lima, isso representa o conflito dos personagens e, consequentemente, o modo como o amor é retratado: quase em ponto de erosão, deterioração.


Para o jornalista Ygor Palopoli, há um significado diferente para a escolha da primeira cidade, que reforça o ar de exploração, visto que nenhum dos protagonistas conhece a cidade ou fala o idioma. "Essa descoberta dos locais da cidade reforça a descoberta que ambos têm um pelo outro durante todo o longa" afirma Palopoli.
Sallem destaca que, como Viena é uma cidade em que ambos desconhecem o idioma (alemão), eles só conseguem conversar entre si, o que os deixa muito próximos. Já a Grécia, para o crítico, seria um paraíso, muito usado como destino para luas-de-mel, que é transformado em um momento de brigas e ressentimentos.
Linklater e o tempo
Outro assunto presente na filmografia de Linklater, que nessa trilogia se mostra ainda mais evidente, é o tempo. O cineasta utiliza-o tanto para expressar seu realismo, quanto para desenvolver sua trama e seus personagens.
Como entre os filmes se passam nove anos, os artistas amadurecem bastante e, consequentemente, o texto e os personagens também. O segundo e terceiro tiveram contribuições dos protagonistas Hawke e Delpy na escrita do roteiro, em conjunto com Linklater. Esse amadurecimento do texto pode ser percebido, conforme Palopoli, na forma com que a audiência participa de apenas um microcosmo da vida deles, que, em todas as três obras, dura menos de 24 horas, entretanto, é suficiente para entender quem são eles fora daquele lugar.
Para o jornalista, em Antes do Amanhecer, é notável que o casal possui personalidades muito diferentes, Céline seguindo uma linha mais idealista e Jesse sendo um sujeito que vai contra o sistema de como o mundo funciona. Entretanto, nas sequências, com a passagem do tempo, ele acaba se tornando escritor, e um tanto idealista nesse sentido, enquanto ela coloca os pés no chão.
Esse amadurecimento, segundo Palopoli, também é visto em como o significado do amor transmuta entre os filmes, no primeiro é muito idealista, em que o público se projeta e espera que seja tudo lindo e perfeito. Já no terceiro, é sobre quando esse amor deixa se ser paixão e passa a ser rotina, cotidiano das pequenas coisas da vida, que o tornam ele mais pesado. "Ela que era uma mulher tão sonhadora no início, agora é satisfeita, mas ao mesmo tempo incomodada com o que está acontecendo na vida dela. Não pode largar tudo e seguir o próprio sonho, pois tem filhos e marido, além de ser baseado muito no pensamento de indecisão: 'O que vai ser da minha vida agora?'" diz o jornalista.
Segundo Sallem, nesse caso, a influência de Hawke e Delpy no roteiro torna-o mais vívido, visto que Linklater é um cineasta muito colaborativo e menos egocêntrico do que outros. "Além de os protagonistas serem conhecedores da arte que trabalham e, por interpretarem esses personagens tão intimamente bem, acabam conhecendo o domínio e terem algo para oferecer para essa construção narrativa." Entretanto, essa colaboração funcional não poderia atestar para todos os casos no cinema, afirma o crítico.

Para Lima, embora haja mudanças nos personagens entre os filmes, até mesmo a opinião deles sobre determinados assuntos, Linklater consegue resgatar o laço dos protagonistas, de modo que, quando a audiência assiste ao segundo ou terceiro filme, tem a impressão de que o anterior aconteceu há pouco tempo, devido à forma como o cineasta resgata um filme dentro do outro, mesmo amadurecendo o texto. Esse fator vai além do amadurecimento do elenco e equipe, visto que todos nós também passaramos por esse processo. "Algo que Linklater é muito bom em fazer é que, caso assistamos aos filmes em períodos diferentes de nossas vidas, vamos nos identificar com um filme diferente." diz Lima. Essa maturidade abordada vem da forma artesanal de fazer cinema, do ultrarrealismo e da forma muito particular com a qual ele encara o cinema.
A crítica acredita que os autores conseguem colocar parte de suas personalidades nos personagens, o que contribui também para essa abordagem realista. Para ela, essa forma artesanal de retratar o tempo também está presente em outro filme do cineasta: Boyhood (2014), um “coming of age” que retrata 12 anos de uma família, filmado durante 12 anos, ou seja, acompanha todo o elenco, de fato, envelhecendo, sem que haja troca de atores ao longo da trama, além de também contar com a presença de Hawke no elenco.
Para Sallem, o amor no primeiro filme é um amor jovem, que remete à ideia de que dará sentido à vida, algo que é modificado no segundo longa, visto que diz mais sobre a falta que Céline sente do amor. Já na terceira obra, torna-se uma espécie de mágoa ou ressentimento, de modo que o amadurecimento dos personagens ocorre de forma coerente ao longo dos anos, de um jovem adulto a um adulto médio.
A respeito do tempo, o crítico observa que, no primeiro filme, fala-se mais do futuro e de possibilidades daquele amor, já o segundo aborda mais o presente, como está a vida daqueles personagens naquele momento e qual decisão tomarão, por fim, no terceiro, olha-se mais para o passado e qual o resultado dos nove anos em que passaram juntos desde então.
Segundo Sallem, o tempo tem um significado singular nos três filmes, nos dois primeiros, ele é um obstáculo, pois os protagonistas possuem poucas horas para ficarem juntos, por isso a utilização do plano-sequência tão presente em ambos, talvez seja a melhor forma de retratar nesse cenário. Já no terceiro, o crítico destaca que essa adversariedade não é mais presente, pode até referenciar o período que passaram juntos, mas não necessariamente o passar do tempo. "Então, pode-se abordar uma encenação mais tradicional; ainda que aposte nas mesmas dinâmicas apresentadas nos outros dois longas, com sequências longas, possui uma abordagem mais convencional desses momentos, com uma decupagem mais clássica, que não apenas acompanha o andar dos personagens, mas que tenta buscar uma imagem que expresse uma ideia" afirma o crítico.
Essa ideia de adversariedade do tempo é exposta a todo momento no segundo filme, o qual possui o tempo diegético (período em que a trama se passa) igual ao tempo extra-diegético (período de duração da obra), de forma que os personagens possuem exatos 80 minutos para ficarem juntos, não há saltos temporais. Essa ideia foi exposta a todo momento na fotografia do filme, que possui cores estouradas, ou seja, o sol torna-se um elemento fundamental, que nos lembra a todo momento que o tempo do casal acabará quando ele se puser.

Todo esse desgaste causado, entre outras coisas, pelo tempo, reflete-se na crise conjugal que o casal apresenta no terceiro longa. Quanto às inspirações que os artistas obtiveram ao realizar o terceiro longa, Lima afirma reconhecer uma grande influência da obra Cenas de um Casamento (2023), dirigida por Ingmar Bergman (produzida primeiramente como uma minissérie para televisão, posteriormente transformada em um filme), que impactou o cinema mundial. Segundo a crítica, o fato da construção da briga em Antes da Meia-Noite ser tão crua e próxima à realidade, ou seja, o mais honesta possível dentro dos dilemas daqueles personagens, é algo que remete à forma de agir de Bergman.
Sallem não enxerga referências como ao filme de Bergman, pois, segundo o crítico, as obras possuem finalidades diferentes. “Eu não vejo inspiração, mas eu tampouco vejo que é algo comum, parece-me algo mais que existe no tecido da arte, não é uma menção ‘poxa, eu vou querer buscar isso nesses filmes’, pode haver pontos de contato, porém.” O crítico destaca que as referências do cineasta vêm do cinema europeu, mesmo que não especificamente de algum movimento como o Neorrealismo ou Nouvelle Vague.
Conforme Sallem, os diretores que, assim como Linklater, estabeleceram-se no fim da década de 1980 e início da de 1990 nos Estados Unidos, devido a essas influências europeias, conseguem narrar histórias de um escopo menor, com mais liberdade e menos recursos. “Eu até substituiria a palavra realismo por mundano. Essa ênfase no cotidiano, em dramas comuns e em relacionamentos que nós poderíamos encontrar na vida real, em dilemas os quais nós mesmos poderíamos nos encontrar.”
Palopoli, por sua vez, afirma que essa trilogia influenciou vários filmes de romance modernos, os quais são focalizados no diálogo, que se torna o condutor da história, em que presenciamos apenas um microcosmos da vida desses personagens. Pode-se observar essa influência citada pelo jornalista em filmes como Antes do Adeus (2014), Encontros e Desencontros (2003) e Rye Lane (2023), que também consistem em observar duas pessoas conversando e se conhecendo durante um curto período de tempo.
Onde assistir?
Os dois primeiros filmes da trilogia, Antes do Amanhecer e Antes do Pôr do Sol encontram-se disponíveis na plataforma de streaming Max, já o terceiro, Antes da Meia-Noite, para compra e aluguel nas plataformas digitais.
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Excelente abordagem sobre esta trilogia
Excelente matéria
Excelente texto e excelente escolha de filmes!👏👏
Excelente trilogia