Personagens escritos como crítica são aclamados pelo público
- Câmara Escura
- 12 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de mai. de 2024
Ambiguidade em obras gera visões divergentes
Por Alan Alves

A arte tende a abordar temas sociais, sobretudo o cinema. A sétima arte tem o poder de impactar o público, dar visibilidade a temas necessários e gerar reflexões nos espectadores. Ao abordar essas questões, o cinema abre portas para discussões e a possibilidade para reivindicações que criam uma sociedade melhor, fazendo uso sobretudo da crítica social, por vezes usando personagens para demonstrá-la.
Há casos, porém em que fatores socioeconômicos fazem com que esse olhar crítico projetado em tela não esteja de acordo com as reflexões do público. É o caso de personagens como Capitão Nascimento (Wagner Moura) em Tropa de Elite (2007) e Patrick Bateman (Christian Bale) em Psicopata Americano (2000).

Tropa de Elite é um longa dirigido pelo diretor brasileiro José Padilha, que conta sobre o cotidiano dos policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), mais especificamente durante a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, a qual exigiu operações de pacificação no morro do Turano, no Rio de Janeiro. No filme, Capitão Nascimento busca deixar seu cargo e por isso precisa de um substituto. Ao mesmo tempo, Mathias (André Ramiro) e Neto (Caio Junqueira) se unem à Polícia Militar; incomodados com a corrupção na corporação, ambos se unem ao BOPE.

Psicopata Americano foi dirigido por Mary Harron e conta a história de Patrick Bateman, um jovem que trabalha em Wall Street, Nova York. A rotina do personagem é marcada por cuidados extremos com a aparência e jantares em restaurantes caros, entretanto, durante as noites ele age como um serial killer. O comportamento de Bateman ao longo do dia garante que seja visto apenas mais um banqueiro de investimento, não sendo percebido como uma ameaça, mas como sua sede de sangue aumenta, isso o torna mais perigoso.
Capitão Nascimento

Em uma entrevista no programa Roda Viva em 2007, Padilha declarou que Tropa de Elite é uma crítica à Polícia Militar: “Eu fiz um filme que critica violentamente a instituição policial, e resolvi contar a história pela ótica do policial”. Apesar disso, as opiniões com relação à visão do diretor divergem. Capitão Nascimento foi bem-recebido pelo público e foi considerado até mesmo um herói, apesar da possibilidade de essa visão heroica ser um fenômeno daquele período, visto que jornais da época publicaram matérias que abordavam o assunto.
O Câmara Escura realizou uma enquete na qual 36% dos participantes acreditam que as ações de Nascimento são necessárias, mas não admiráveis; 34% discordam das ações do personagem; e 30% concordam com o que ele faz. “O negócio do Capitão Nascimento é que ele deu voz, no cinema brasileiro, a um tipo de mentalidade que parte da população brasileira tinha, em especial uma parte mais conservadora, de uma forma que a gente ainda não tinha visto sendo feita no cinema brasileiro”, declara Max Valarezo, jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB) e idealizador do canal Entre Planos.

Há também questões na trama que podem gerar ambas as ideias, como as cenas de interrogatórios, algo que acaba levando os policiais ao avanço de seus objetivos, mesmo que esse seja obtido por vias que ferem os direitos humanos. Padilha declarou também que, ao mostrar a tortura em primeiro plano, não há necessidade de dizer que é algo ruim, pois o ato em si o é naturalmente.
Apesar disso, 52% dos participantes da enquete concordam com os atos praticados pelo BOPE durante a obra. Valarezo afirma que, apesar de o filme não tentar demonstrar as cenas de tortura como algo bom, ao retratar que as vítimas possuem informações relevantes, gera a ideia de uma cadeia de comando. Portanto, pode levar a uma visão de semelhança entre os torturados e os antagonistas da obra.
Além disso, o posicionamento da imprensa sobre o longa também gera impactos nessa análise. Veículos publicaram matérias sobre o então novo “herói nacional” e, aliada a uma elogiada atuação de Wagner Moura, junto de uma forte iconografia, reforçaram a visão do público. As matérias da época descreviam o personagem como terror dos criminosos e usavam suas frases de efeito nas capas. “Não é só uma questão da recepção puramente do público, tem a questão de como esses veículos repercutem esse personagem”, afirma Valarezo.
A visão do diretor é o fator de maior importância, apesar de Padilha afirmar que se tratava de uma crítica, mas as visões do público concordam em partes: 48% dos participantes veem o filme como uma crítica mal-executada; 32% acreditam ser uma crítica bem-executada; e 18% creem que o longa foi feito para glorificar a polícia e que foi bem-executado pelo diretor.
Diante disso, para os espectadores, ao conceber a obra, o diretor deu razão as figuras criticadas. “Quando a gente tem um filme que é capaz de criar reações tão diversas em relação a um personagem, é porque existe um certo nível de ambiguidade bem-executado. Uma certa sutileza nas ideias”, declara Valarezo. E complementa: “Ele está querendo mostrar, ‘olha só, esses caras aqui do BOPE, eles são, na verdade, uns monstros’, ele está querendo mostrar que eles agem fora da lei, mas, ao mesmo tempo, existe uma demonstração daquilo como algo quase o mal necessário”.
Patrick Bateman

O filme Psicopata Americano satiriza a juventude yuppie, grupo que surgiu na década de 1980, composto por jovens adultos de boa formação acadêmica, com cargos de renome em empresas de finanças e conhecidos por um estilo de vida consumista e luxuoso. Patrick Bateman é um desses jovens, sua vida é marcada por cuidados extremos com o corpo e luxos garantidos pelo seu cargo, além de ser secretamente um assassino.
Bateman foi adotado como ícone principalmente por comunidades denominadas como sigma, que reuniria homens com capacidade inatas de liderança, reservados e supostamente uma preferência entre as mulheres. O personagem é usado em vídeos com as hashtags “sigma” ou “sigma edit” no aplicativo chines TikTok, “O Patrick Bateman vai ser esse cara que está sempre retratado como obcecado pelas aparências e pelo status e por quem tem o melhor terno e tudo mais”, destaca Valarezo. Os vídeos destacam frases impactantes de Bateman, muitas carregadas por misoginia. Outras edits usam a música The Perfect Girl do artista Mareux e alguns mostram cuidados com a aparência de Patrick.
De acordo com uma matéria da Folha de São Paulo, o termo sigma surgiu em 2011, a partir do escritor e ativista da alt-right americana Theodore Beale. Essa classificação estaria acima de homens "alfa”, “beta” e “ômega”. Para os membros desses grupos, acredita-se que o sistema favorece as mulheres, além de serem infiéis, interesseiras e sem caráter. Valarezo define que as consequências dessa idolatria seria principalmente o fato de adotar um personagem cuja índole é definida por violência e por destruição, além de destacar que há uma diferença entre um personagem como ser dramático e tomá-lo como um ícone, algo que seria perigoso.
A sátira do longa é de fácil compreensão, existindo cenas nas quais é perceptível o quanto o filme está fazendo piadas com determinados comportamentos do protagonista, como as cenas de sexo, por exemplo, nas quais Bateman passa o tempo todo fazendo poses para si no espelho. Dessa forma, dúvidas surgem diante dos motivos que levariam um personagem tão caricato a se tornar um modelo a ser seguido.“O fato de que tem pessoas que olham para o Patrick Bateman e idolatram ele, eu não acredito que seja uma prova de que a sátira do filme não funciona. Eu acho que, pelo contrário, eu acho que funciona sim. Tanto que você tem esses dois lados” declara Valarezo e complementa afirmando que o plot twist não entrega respostas fáceis. Então, ao impor uma dúvida, o filme desafia o espectador a refletir sobre o que foi representado.
Ambas as obras propõem uma reflexão aos espectadores que pode ser notada logo no início, mas, ao mesmo tempo, se encontram com as crenças e com o contexto socioeconômico. Estabelece-se uma ambiguidade em ambas as obras, permitindo diferentes interpretações do público e como será impactado pelos filmes.
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