A Trilogia da Depressão de Lars von Trier
- João Pedro Peron
- 19 de jul. de 2024
- 11 min de leitura

Lars von Trier é um cineasta e roteirista dinamarquês muito polêmico e controverso, seus filmes são conhecidos por serem viscerais, indigestos e muito chocantes. Sua abordagem em muitos de seus filmes assemelha-se ao documental, com a câmera na mão, sempre em movimento instável com movimentos panorâmicos, além de muitos cortes secos que vão construindo a narrativa.
O diretor, ao longo da sua carreira, trabalhou em duas trilogias, as quais os filmes não fazem parte de um mesmo universo e não possuem conexão alguma, a não ser a temática, como a “Trilogia do Coração de Ouro”, que é composta dos filmes Ondas do Destino (1996), Os Idiotas (1998), sendo este pertencente ao Dogma 95 – movimento cinematográfico idealizado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg – e Dançando no Escuro (2000), sendo este indicado ao Oscar de Melhor Canção Original. Ademais, a “Trilogia da Depressão” apresenta filmes pessimistas que abordam a melancolia em diferentes cenários, são eles Anticristo (2009), Melancolia (2011) e Ninfomaníaca (2013). Confira a seguir um pouco sobre essas obras:
Anticristo (2009)

Uma mulher (Charlotte Gainsbourg) está em luto profundo após o falecimento de seu filho, enquanto seu esposo (Willem Dafoe), que também atua como seu terapeuta, tenta tratá-la. Ambos vão para uma cabana na floresta do Éden, pois ele acredita que, assim, o tratamento será mais eficiente.
Aqui, o diretor, que passava por uma depressão profunda enquanto fazia o longa e parte do luto para lidar com tal temática, como a morte da criança já ocorre em um prólogo no começo do filme. No primeiro capítulo, imergimo-nos na profunda e constante dor da mãe, que, assim como seu marido, não conhecemos o nome. Por seu companheiro também atuar como seu terapeuta, é construída uma dinâmica entre os personagens que se mistura entre o familiar e o analítico, como se o homem estivesse a todo momento estudando a mulher, embora diga que a ama e que simpatiza com a sua dor (uma vez que o filho também era dele), mas sempre com um olhar frio, buscando solucionar o problema da esposa para aliviar seu ego profissional e não porque, de fato, está envolvido emocionalmente com ela. Ademais, só o vemos se emocionar e viver seu luto uma vez, no enterro da criança.
Ele sempre está preocupado com o que ela tem mais medo, para que consiga arrancar o mal pela raiz, e quando descobre que ela se sente mais exposta em uma parte específica da floresta do Éden, ele faz com que viajem imediatamente para lá. Todo o lugar é visto ao mesmo tempo como uma ameaça e como um lugar de conforto, ideias que se alternam entre os protagonistas à medida que a trama avança. Anticristo possui diversos pontos amplamente interpretativos, com passagens de sonhos que permeiam a relação entre os personagens e deles com a natureza, que é construída como um próprio personagem aqui e que possui diferente impacto nos personagens.
Lars von Trier é muito conhecido por “chocar” em seus filmes e aqui acredito que seja um dos mais perturbadores de toda a sua filmografia, com sequências que vão se tornando extremamente gráficas e aterrorizantes à medida que o filme avança, visto que começa como um drama, mas vai revelando seu lado de terror calmamente. É complicado falar de um filme tão interpretativo e alegórico como Anticristo sem entrar em território de spoilers, temas como sofrimento de mulheres e misoginia são abordados na obra, por exemplo. Entretanto, o cineasta está mais preocupado em “chocar” do que com a mensagem propriamente dita. Esse “choque pelo choque” empobrece, a meu ver, o que o artista quer dizer com essa obra, que é um dos longas mais perturbadores que eu já vi na minha vida.
O elenco está ótimo, a Charlotte Gainsbourg ganhou Melhor Atriz em Cannes em 2009 interpretando uma pessoa que começa quase como uma personificação do luto e do desespero e vai se transformando aos poucos em algo mais. O Willem Dafoe cria essa dinâmica de poder perversa e muitas vezes serve para nos espantarmos com os bizarros eventos da Floresta do Éden ao observarmo-nos com os olhos do terapeuta. A fotografia também é bem interessante, um tanto escura, mas com forte interferência da luz, que faz com que os personagens muitas vezes fiquem pálidos. A natureza, sendo tratada como um personagem, faz-se muito presente na fotografia, com tons esverdeados que ameaçam e confortam ao mesmo tempo.
Anticristo é tão alegórico que deve render horas de interpretações, embora tenha uma abordagem muitas vezes vazia. Atualmente, o filme encontra-se no streaming MUBI.
Melancolia (2011)

Considerado por muitos uma das melhores representações da depressão no cinema, a obra retrata duas irmãs, Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), que veem seu relacionamento já tenso ser desafiado quando o misterioso planeta Melancholia ameaça colidir com a Terra.
Lars von Trier se inspirou em sua própria experiência com a doença e, desse lugar, consegue construir uma visão cinematograficamente linda para o fim do mundo. Como se o fim da humanidade fosse um alívio para a protagonista, que queria apenas que tudo acabasse, porque, segundo ela, “Tudo o que eu sei é que a vida na Terra é má”.
O filme abre com uma sequência de trechos em câmera lenta que são uma espécie de “flashfowards” interpretativos acompanhadas de um tema musical belíssimo que se repete constantemente no longa. Uma, por exemplo, envolve raios saindo dos dedos de Justine, efeito de quando o planeta Melancholia aproxima-se da Terra, mas que pode ser interpretado do sentimento dela tendo a felicidade ou até mesmo sua alma saindo de seu corpo, pela ponta de seus dedos, enquanto ela apenas observa tal evento, sem poder fazer nada sobre. Outra passagem interessante ocorre quando a protagonista tenta caminhar, mas um emaranhado de fios segura seus pés, descrição que a protagonista dá quando quer expressar como está se sentindo, relacionando a depressão de forma alegórica com diversas passagens poeticamente trágicas e tristes, que engrandecem essa obra cinematográfica.
O primeiro capítulo começa no dia do casamento da protagonista, que deveria ser um dos momentos mais felizes de sua vida, mas que é destruído pela indiferença que Justine sente a respeito de tudo, se sentindo impossibilitada de sentir algo a não ser tristeza. Ela ainda tenta manter as aparências, visto que toda a cerimônia foi extremamente cara e não quer desapontar os convidados, mas uma série de eventos caóticos familiares e profissionais a fazem afrouxar as cordas no próximo capítulo e se deixar levar por tamanha melancolia, que é refletida diretamente na fisicalidade dela, uma vez que não consegue mais tomar banho ou comer e deseja apenas ficar deitada, como se contasse com a inevitabilidade do fim: o planeta Melancholia irá colidir com a Terra e não a nada que possam fazer.
Todo esse capítulo é filmado com cores quentes, que deveriam representar felicidade e conforto, mas que entram em contradição com o sentimento naquele lugar. A escolha do cineasta em selecionar vários closes relativamente longos no rosto da protagonista demonstra uma exacerbada inexpressividade desta, que encontra-se sempre destoante do lugar. Outro recurso que o diretor usa para enfatizar esse sentimento de não-pertencimento e exclusão é utilizar planos abertos em que a protagonista encontra-se sozinha, pequena, como se o ambiente a pressionasse, como na cena em que caminha sozinha pelo campo de golfe ou quando está sentada sozinha em uma pilha de cadeiras após a festa, com o salão já vazio.
O segundo capítulo, que aborda mais as crises depressivas de Justine, é filmado com cores dessaturadas, com exceção do planeta Melancholia, que possui um azul brilhante e muito convidativo, de forma como a própria protagonista enxergasse aquela casa e jardim de maneira mórbida, esperando pacientemente que o astro acabasse com a vida na Terra, de forma até aliviada, pois tudo finalmente iria acabar, elementos que fazem, na minha opinião, a fotografia de Melancolia belíssima. Em uma cena desse capítulo, é possível ver a protagonista nua deitada na grama olhando para o grande planeta brilhante no céu, como se entregasse definitivamente para esse inevitável final. Esse sentimento entra em contraste com o da irmã, que fica aterrorizada pela possibilidade da colisão cosmológica, embora seu marido a acalme e diga que ele apenas sobrevoará a Terra, sem que os astros se encostem, é muito visível a ansiedade de Claire em uma relação dialética com a depressão de Justine. O impacto que o planeta Melancholia tem em ambas é completamente diferente, é como se suas desavenças tomassem um corpo, um corpo que reage ao que está acontecendo. No começo do filme, a protagonista parece se esforçar ao máximo para “parecer” feliz em razão dos outros à sua volta, mas à medida que a trama avança, ela vai soltando as cordas com as quais tentava se sustentar para não desabar completamente em sua própria tristeza, em uma série de eventos que apenas desiste de tentar.
A representação da depressão de Lars von Trier vai além de Justine, pois sua irmã Claire vê-se na necessidade de tirar a protagonista daquele estado, mas sem saber como, deixando a doença interferir nas vidas que rodeiam a depressiva. Seja forçá-la a se levantar, ajudar na higiene pessoal e até cozinhar o prato favorito da irmã que, ao comer, diz uma das frases mais famosas do longa “Tem gosto de cinzas”. Embora o estado de Justine seja inegavelmente doente, muitos a culpam por estar com tamanha tristeza, pedem constantemente para ela apenas ficar feliz e não fazer uma cena, como se fosse uma escolha, o que faz muitas vezes a própria protagonista se sentir mal por não estar assim.
Todo o elenco está incrível, em especial as protagonistas, Kirsten Dunst representa perfeitamente uma mulher com depressão profunda que não tem mais esperanças na vida, tendo um arco bem interessante, partindo de como ela finge que está bem, até desistir completamente de tentar. Dunst ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes em 2011. Charlotte Gainsbourg também está excelente, a dinâmica de contraste entre as duas funciona muito bem, todo o pavor e desespero que a Claire sente com a possibilidade de tudo acabar é muito bem representado.
Portanto, Melancolia consegue representar perfeitamente a depressão, tanto do ponto de vista do doente, quanto da família que o cerca, que o encara muitas vezes como um fardo. A abordagem poética e sensível que Lars von Trier utiliza faz desse, na minha opinião, um de seus melhores filmes. Atualmente, o filme encontra-se no streaming MUBI.
Ninfomaníaca (2013)

Dividida entre dois volumes, Ninfomaníaca: Volume 1 e Ninfomaníaca: Volume 2, ambos lançados em 2013, a obra conta a história de Joe (Charlotte Gainsbourg) que, após ser encontrada em um beco à noite com muitos hematomas por Seligman (Stellan Skarsgård), vai para a casa dele e afirma ser ninfomaníaca, ou seja, uma pessoa viciada em sexo, enquanto conta sua história de vida para o homem.
Para finalizar a trilogia da depressão, Lars von Trier opta por abordar o vício e faz questão de desvincular o sexo do amor ao contar essa história. Desde criança esse problema é presente na vida da protagonista, que assemelha-se a um copo furado, que busca encher-se constantemente, algo que nunca consegue.Essa busca pela satisfação é que dá sentido à vida de Joe, ou pelo menos o que define todas as suas ações e os eventos que ocorrem em sua vida. Ela se acha uma pessoa terrível, pensamento que a todo momento é contrariado por Seligman, que sempre consegue associar as experiências sexuais de Joe com assuntos da literatura, matemática, religião, entre outros. Essas digressões ajudam algumas vezes a visualizarmos como a cabeça da protagonista funciona, mas em outros momentos quebra o ritmo narrativo de uma forma quase tediosa, uma vez que ocorrem repetidamente quando a história está ficando mais interessante.
A obra deixa claro que o vício em sexo não é como outros vícios que dependem de substâncias externas para persistirem. Além de que a sexualidade é algo inerente do ser humano e que está presente de forma natural no cotidiano, menos para os ninfomaníacos. Do mesmo modo que é desvinculado o amor do sexo – a própria protagonista afirma odiar sentimentalismos – o prazer é substituído pela necessidade, visto que a vida da protagonista depende disso.
Toda a história que Joe conta é nucleada em suas experiências sexuais de forma muitas vezes não linear, mas que faz sentido narrativamente, que começa com a descoberta sexual, ou, como diz a protagonista, desde que a própria descobriu a sua buceta, quando criança. O primeiro volume é construído como base no deslumbre pelo sexo e a triste rotina em que a ninfomaníaca se colocou, na qual diversos homens visitavam a sua casa, mas nenhum tinha um contato sentimental com ela. Apesar da própria Joe repetir diversas vezes que odeia sentimentalismo, a solidão inevitável que a sua situação lhe proporcionou foi extremamente dolorosa para ela, um vazio que jamais conseguiu preencher. Essa rotina é filmada em “split screen”, ou seja, a tela é dividida como uma história em quadrinhos, onde, nesse caso, cada 1/3 da tela representa um dos diversos homens que visitavam Joe, para ressaltar a incontrolável repetição da vida sexual da protagonista. Como esses homens serviram apenas para satisfazer seus desejos sexuais, Joe se limita a denominá-los apenas por letras – não se sabe se são as iniciais de seus nomes ou se significam algo além –, menos um: Jerôme, que desperta algo a mais na ninfomaníaca. O único personagem que é abordado pela protagonista com afeto é o seu pai, interpretado por Christian Slater, que serve de base para vários pensamentos da protagonista e é visto quase como uma divindade, um ser repleto de bondade e sem malícia.
Não pensem que, por se tratar de uma história triste, o filme não possua humor. Há um capítulo inteiro em que Lars von Trier constrói uma sequência tão absurda e dramática que chega a ser hilária, além do contraste entre as digressões de Seligman e a narração de Joe, que chega a ter momentos cômicos também. Esse tom é muito bem dosado pelo cineasta, principalmente no primeiro volume. Ademais, a obra apresenta identidades próprias conforme os capítulos avançam, de modo que a maioria possui uma singularidade na fotografia, seja em preto e branco, mudança do “aspect ratio”, mudança de digital para película, entre outras, que conversam muito com o estado emocional da protagonista nesses diferentes episódios de sua vida. Além da tentativa constante do diretor em deixar o filme “poético”, mas que, a meu ver, parece muitas vezes forçada, principalmente na segunda parte.
O segundo volume é mais trágico, explora os fetiches que a protagonista busca incessantemente para tentar preencher esse vazio, além de retratar como essa jornada acabou por destruir a vida e família da personagem, que conta com arrependimento e angústia desse feito. Apesar da solidão dessa angústia conseguir ser abordada de modo muito conciso, a questão da abstinência deixou muito a desejar na minha opinião, visto que acredito ser um dos temas mais importantes para se tratar a respeito de um vício e aqui não possui destaque, muito pelo contrário, pois Lars von Trier utiliza esse elemento como plano de fundo, mas tão ao fundo que parece quase não ter impacto algum na vida de Joe.
Outro ponto em específico nesse volume que me incomodou é a tentativa quase obsessiva do cineasta em fazer com que essa história seja sobre ele, com diversos diálogos provocativos, mas que não condizem muito com os personagens na minha visão, e sim no que von Trier deseja dizer, como se as palavras de Joe fossem, na verdade, as suas próprias, sobre diversos temas. Isso inclui referências a episódios específicos da vida do diretor e uma participação especial do próprio na obra: quando a protagonista discursa sobre quando se olha no espelho, a câmera mostra o objeto e quem está refletido não é ela, e sim, o próprio cineasta manobrando a câmera, abordagem auto representativa que se perde no egocentrismo do artista. Esse é um dos principais pontos que fazem com que o segundo volume seja bem inferior ao primeiro.
Em quase todos os seus filmes, o diretor busca chocar a audiência e aqui, por se tratar de um tabu da sociedade: o sexo, não seria diferente. As diversas cenas de sexo são totalmente explícitas, de modo que filmagens de dublês de corpo são incorporadas com filmagens do elenco principal, técnica imperceptível aos olhos de quem assiste, que realmente acredita que os atores realizaram atos sexuais reais durante as gravações. Ademais, próteses de vaginas e pênis são constantemente utilizadas ao longo da trama.
Para mim, o final que von Trier dá para a história de Joe é muito forçada e não faz muito sentido, assim como toda a personagem da P, interpretada pela Mia Goth. Mas isso não faz desse segundo volume ruim e muito menos arruinar toda a obra de Ninfomaníaca. Atualmente, a obra encontra-se no streaming Telecine.
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